Novas idéias, velhos dilemas

Wenndell Amaral
Estava matutando há uns dias para escrever algo sobre a ideia do Governo Federal intitulada de Vale Cultura, quando, navegando pelo site (ou sítio) Cinética - Cinema e Crítica - encontrei e li um ótimo texto sobre esse projeto de lei que visa melhorar o acesso dos brasileiros de baixa renda à cultura: teatro, cinema, comprar livros, Cds e Dvds.

O projeto da lei foi assinado pelo Presidente Lula no final do mês de julho e deve ser encaminhado ao Congresso ainda nesse mês de agosto. Pelo jeito, somente no próximo ano poderemos avistar os trabalhadores com seus cartões magnéticos (como aqueles do Bolsa Família) comprando ingressos no cinema ou livros na shopping mais perto. Enquanto isso, fiquemos com as considerações extraídas no Cinética.

O Vale Cultura, afinal, vale para quê?
por Lila Foster

Em discurso durante o lançamento do Vale Cultura (50 reais disponibilizados para gastos com cultura, via isenção fiscal, para trabalhadores que ganham menos de 5 salários mínimos), o presidente Lula insistiu nos benefícios ao trabalhador que, uma vez aprovado o projeto, poderá ter acesso a outros bens culturais, livrando-se assim da televisão, cuja programação o presidente considera ruim. O espantoso nessa declaração, além da sinceridade, é que ao mesmo tempo em que o governo tenta reverter um processo de elitização da cultura, ele se exime de qualquer responsabilidade ou poder sobre o que é essa TV de qualidade duvidosa. Sobre a má qualidade da programação da televisão brasileira, o governo ainda não conseguiu agir em direção à sua melhoria e democratização. As discussões sugeridas pelo projeto da Ancinav e a chegada da transmissão digital, que politica e tecnicamente poderiam ter possibilitado abertura de novos canais e novas programações, tiveram os seus rumos totalmente determinados, com nenhum tempo para debate das questões e conseqüências envolvidas, pelos grandes canais e por setores do governo. As forças em jogo impossibilitaram totalmente a abertura dos canais para a discussão das suas programações. Uma resposta a esta dificuldade foi a criação da TV Brasil, projeto que tentou reverter a impotência diante das tentativas de regulamentação do setor, mas que agora também se vê diante de uma crise.

Mas, quando Lula assume no mesmo discurso de lançamento que não sabe “como fazer uma política de distribuição de cinema” e que precisa “fazer um grupo para discutir isso melhor", ele toca em um dos pontos nevrálgicos da situação do cinema brasileiro atual, que sua gestão tem tentado encarar de diversas formas, seja por iniciativas como a Programadora Brasil, seu elo com os Pontos de Cultura, o fortalecimento dos cineclubes e diversos festivais de cinema por todo o país: a formação de um circuito alternativo de distribuição e difusão, que tenta chegar às periferias e às cidades pequenas, além de difundir o cinema brasileiro como um todo. Com o predomínio dos “filmes de mercado” brasileiros no circuito e com um excesso de produção que compete no pequeno espaço do circuito de arte e não tem onde passar, o clamor agora é pela ampliação do circuito de exibição e pelo barateamento dos ingressos. O problema que o governo busca enfrentar é duplo. O primeiro é como democratizar a distribuição e exibição dos filmes produzidos no Brasil, ou seja, como possibilitar o acesso à produção incentivada dos últimos anos e viabilizá-la economicamente? O segundo é como tornar o consumo de filmes brasileiros no cinema mais democrático e acessível? É aí que se encaixa o projeto do Vale Cultura. Para o cinema, o discurso envolvido no projeto vai um pouco além da democratização. Mobilizado principalmente por Luiz Carlos Barreto, o Vale Cultura seria uma forma de injetar dinheiro na “indústria”. A equação do produtor também é simples: o mal do cinema é que ele está caro, poucas pessoas podem comprar o ingresso e por isso os filmes não dão público nem dinheiro. O Vale Cultura chega então para salvar a lavoura, é dinheiro em caixa garantido e pilar da nossa industrialização.

É nesse ponto que a história se complica. Não existe solução fácil para o problema em que o cinema brasileiro atual se encontra, a equação é dificílima. Se o acesso ao cinema brasileiro e a produções independentes é tão importante, seria bom repensar o papel das TVs comerciais na difusão da produção independente e na abertura da sua grade de programação. Do ponto de vista de sustentação do filme brasileiro no mercado, nada garante para onde irá o dinheiro do Vale Cultura (a previsão no anúncio do projeto era de R$ 7 bilhões). Onde esse dinheiro vai ser investido, se o problema do acesso à cultura não é somente financeiro? O que garante que esse dinheiro vai para produtos e eventos brasileiros? Fazendo as contas, por que um beneficiário do projeto, imaginando um casal com um filho, iria gastar sua cota mensal indo uma vez ao cinema (incluindo gasto com transporte, duas inteiras e uma meia) se é bem mais barato comprar três DVDs? Os espaços culturais, as salas de cinema, os teatros e os museus se concentram nos centros das grandes cidades e em shoppings, estão distantes das periferias e das pequenas cidades. Se o presidente reconhece isso no mesmo momento em que lança um projeto que disponibiliza dinheiro para o trabalhador consumir exatamente produtos desse circuito, não seria bem melhor direcionar esse dinheiro para a construção e manutenção de salas de cinema e teatros? Ou para o fortalecimento de uma rede de exibição alternativa que já existe em centros culturais, universidades e museus?

Em termos de sustentação dos produtores culturais, também não faz nenhum sentido o governo lançar um projeto de isenção fiscal, se no final do ano passado sancionou a Lei Complementar nº 128/08, que retirou as empresas de produção cultural do Simples, aumentando a carga tributária de 6% para 17,5% e dificultando, com isso, a viabilização financeira das empresas do setor. Quer dizer, o discurso parece muito frágil diante da realidade da cultura no país: a TV que é popular ninguém pode tocar, os produtores culturais sofrem aumento de tributação, diversos filmes brasileiros têm dificuldade de chegar ao circuito exibidor, as periferias e as pequenas cidades não tem infra-estrutura cultural.

Idealmente o Vale Cultura permitirá que as pessoas possam ir ao teatro, ao cinema, ao circo, show de música e dança, comprem livros e DVD. Isso, evidentemente, é um benefício, mas não existe nenhum dado quanto a forma que esse consumo vai se dar e que critérios entrarão em jogo para decidir quem vai ter a maquininha para aceitar o Vale Cultura. Pode ser que o vale lote teatros, mas pode ser também que ele lote as fileiras do último blockbuster americano. E aqui não entra a medida de valor sobre o que se deve ou não assistir, mas cabe perguntar por que mais um projeto com isenção fiscal, com tanto projeto de difusão cultural no Brasil que funciona sem recursos? Em relação ao cinema, mesmo que se amplie o público do cinema brasileiro, isso não forma a base de nenhuma indústria, afinal, não seria mais um incentivo do governo e, portanto, mais uma solução fora do mercado? Isso não seria ignorar a dificuldade que o cinema brasileiro tem encontrado para chegar ao circuito de exibição?

Independentemente do resultado do projeto, se vai ser aprovado ou se a cota vai aumentar para 100 reais como está sendo discutido, o vínculo entre o Vale Cultura e a indústria cinematográfica parece totalmente deslocado e é uma solução muito mais discursiva do que prática. O Brasil tem se digladiado durante anos na tentativa de fortalecimento de uma indústria cinematográfica no país e, quase sempre, se afundou no ideal e nos discursos. Achar que o Vale Cultura é a solução é ignorar toda essa história e não se questionar sobre o quanto estamos dispostos a pagar para termos uma indústria de cinema no Brasil. Ou até mesmo se perguntar: é possível uma indústria de cinema no Brasil?

Link direto para o texto: http://www.revistacinetica.com.br/valecultura.htm

Mais informações sobre o Vale Cultura: http://blogs.cultura.gov.br/valecultura/

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