Alagoas e Haiti, duas faces de uma mesma tragédia

O número de atingidos pelas fortes chuvas que assolaram Alagoas na última sexta-feira, 19 de Junho de 2010, são desoladores. De acordo com dados divulgados pela Defesa Civil do estado em 21 de Junho, as enchentes dos rios Mundaú e Paraíba atingiram 177.282 pessoas, deixando mais de 600 desaparecidos e 26 mortos. Ao todo, 26 municípios foram afetados pelas enchentes. São dados alarmantes, mas seria no mínimo insano compará-los aos 300 mil mortos e mais de 1 milhão de desabrigados que o terremoto de 12 de Janeiro de 2010 acarretou no Haiti. Nesse caso a comparação é válida não pela quantidade, mas sim pela qualidade.

Tendo praticamente a mesma extensão territorial, Alagoas e Haiti guardam também outras semelhanças históricas. Em suas terras surgiram dois marcos da luta pela liberdade nas Américas. Zumbi, Dandara, Ganga Zumba, Acotirene e os quilombolas de Palmares combateram a escravidão negra e criaram em plena Serra da Barriga uma sociedade livre e igualitária que resistiu por mais de um século contra as ofensivas dos senhores-de-engenho e capitães do mato. Menos de cem anos após a morte de Zumbi em terras alagoanas, Toussaint Louverture, Capóis La Mort, Alexander Petion, Henri Kristophe e Jean Jacques Dessalines lideraram aquela que foi a primeira revolução vitoriosa de escravos que se têm notícia na história da humanidade. Em 1804, o Haiti se tornava independente, abolia a escravidão e iniciava um processo popular de reforma agrária.

Essa ousadia foi punida severamente pelos senhores de engenho de ontem e de hoje e, ao que parece, Alagoas e Haiti foram escolhidos como símbolos de sua opressão e imponência. Ao Haiti, após 1804, foi imposta uma descabida e impagável “dívida da independência” por parte dos Franceses, seguida de vinte anos de ocupação militar estadunidense (1915-1934) e uma ditadura sanguinária dos Duvalier pai e filho, que em trinta anos (1957-1986) assassinou cerca de 30.000 haitianos. Com a abertura política no final da década de 80, a esperança de mudanças surgiu com a chegada ao poder do Padre Jean Bertrand Aristide em 1990, mas foi extinta menos de um ano depois com mais um golpe militar sob os auspícios de Washington. Desde então, o país não conseguiu encontrar o equilíbrio e autonomias suficientes para caminhar com as próprias pernas. Situação que só se agravou com a ocupação militar da MINUSTAH em 2004, liderada pelo exército brasileiro. O resultado é que o Haiti é hoje a nação mais pobre do continente americano, com 56% da população abaixo da linha da pobreza e com uma expectativa de vida de 58,1 anos. Isso sem contabilizar as conseqüências do terremoto de 12 de Janeiro.

Não houve ocupações militares da ONU ou dos Estados Unidos em Alagoas, é fato, mas em compensação o estado vive sob uma ditadura ferrenha que já dura séculos e que ceifou mais vidas que qualquer outro regime ditatorial nas Américas: a ditadura da Cana. Mesmo sendo o segundo menor estado em extensão no Brasil, Alagoas está entre os cinco maiores produtores de cana-de-açúcar do país. São 448 mil hectares destinados para esse monocultivo, com uma produção que se aproxima dos 30 milhões de toneladas de cana por ano. Isso só é possível graças à devastação ambiental e à exploração dos trabalhadores. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o estado é o terceiro do país em índices de trabalho escravo, e o primeiro da região Nordeste com mais casos de trabalho escravo no campo. Somente em 2008, foram libertados 656 trabalhadores escravos, todos saídos dos canaviais. O resultado é que Alagoas sustenta hoje o pior Índice de Desenvolvimento Humano, a maior taxa de mortalidade infantil, o maior índice de analfabetismo e a menor expectativa de vida dentre todos os estados do país. Isso sem contabilizar as conseqüências das enchentes de 19 de Junho.

Fenômenos naturais podem agravar, mas não criam a miséria. No Haiti e Alagoas, a miséria já existia antes de qualquer terremoto ou enchente.

Texto publicado no blog mundoemmovimentos.blogspot.com do sociólogo e jurista Sérgio Coutinho dos Santos.

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