FILME: BAIXIO DAS BESTAS

Baixio das Bestas, 2006.
Dir.: Cláudio Assis
Com:Caio Blat, Dira Paes, Matheus Natchergaele, Mariah Teixeira, etc.
Dur.: 84 min.

O imensurável abismo social crescente entre abonados e desabonados  que descaminha milhões de vidas brasileiras é a locomotiva que traciona a película do pernambucano Claudio de Assis. Em contraponto às comédias mela-cuecas que inundam os cinemas nacionais produzidas em sua maioria pelos insípidos irmãos Marinho e suas Organizações Globo [que em sua maioria só servem para desvirtuarem a Lei Rouanet, cooptando dinheiro público para bolsos de produtores e diretores sem nenhum compromisso com a Cultura, muito menos com a Arte, mirando apenas o alvo do lucro e promoção pessoal de alguns “seletos” atores com produtos nivelados por baixo], os filmes dirigidos por esse talentoso diretor são pontuais em captar de forma real e crua a realidade que nos rodeia paralelamente a nossas ordinárias vidas, que por diversos fatores psicossociais deixamos de identifica-la em meio à nossa atual falha representação do mundo inteligível. Foi assim no premiado Amarelo Manga e em Baixio das Bestas ele fecha sua trilogia acerca do desamor, ódio e consequente violência que advêm basicamente da destruição sistemática das instituições sociais. 

Abordando as relações parentais entre ascendentes e descendentes através dos núcleos dos personagens principais, a franzina adolescente Auxiliadora, [interpretada de maneira surpreendente por Mariah Teixeira] e o jovem Cícero, filho de família tradicional da Zona da Mata pernambucana [personificado pelo sempre competente Caio Blat] a história vai se desenvolvendo de maneira peculiarmente sombria, levantando questões morais e éticas que veem se perdendo com o avançar dos tempos até nas áreas populacionais mais distantes das pérfidas grandes cidades. Isso, se é que existiram reflexões éticas e morais no âmago dos conterrâneos perpetradores de Auxiliadora naquela localidade tão longínqua da civilização. Depois do filme firmou-se a seguinte pergunta em minha mente: a moral e a ética estão se esvaindo rapidamente do espírito do brasileiro ou nunca chegaram a fazer parte significativamente de nós? O avô de Auxiliadora, seu Heitor [na minha ignorante opinião um alterego de Fernando Teixeira devido a tão sólida interpretação] é um senhor doente, de idade avançada que apesar da aparência inocente tem dentro de si nada além de maldade exteriorizada por uma falsa moral e uma falsa ética que fica evidente já na primeira cena do filme onde o mesmo exibe a neta nua relutante nos fundos de uma igreja abandonada em troca de insignificantes valores pecuniários. O universo da trama tem como núcleo a adolescente que ao ser vista sendo exibida pelo avô por Cícero, perde o status de pessoa e se transforma para ele em um objeto. Subentende-se que havia aflorado em Cícero um amor platônico pela menina que depois da descoberta do abuso forçado pelo avô, transmutou-se em ódio.


Se nas capitais dos Estados o inferno anda instalando-se em ritmo avassaladoramente constante, imagine que a situação da segurança nos rincões desse primitivo Brasil não é nada alentadora já que o Estado não se faz presente nem nas cidades quanto mais onde não se tem nem estrutura básica de saneamento e estradas... Não há Estado no interior do Brasil. Aqui, as leis são consuetudinárias, ou seja, baseadas no costume não necessitam estar escritas e muitas vezes são feitas na hora em detrimento dos menos favorecidos. O costume não costuma utilizar-se de um mínimo que seja de isonomia, tratando diferentes como iguais. No mundo real o poder econômico plana soberano até mesmo sobre a Justiça. São os resultados desses mecanismos perversos somado à deterioração moral pregada pelas novas correntes políticas vigentes que Baixio das Bestas transmuta excepcionalmente para a tela.


Cícero é o típico jovem de classe média alta interiorano que estuda na capital durante a semana e nos fins, às vezes, vai “visitar a família” no interior. Na verdade o tempo do jovem era gasto com bebidas, drogas e sexo com as prostitutas locais sempre em companhia de Everardo [magistralmente interpretado por Matheus Nachtergaele], um homem já formado que insistia em permanecer num mundo próprio onde valiam apenas suas próprias regras, como um Peter Pan sertanejo. Subentende-se que exista uma grande dose de homossexualidade entre os dois, visto que são correntes as cenas de nudez e elogios rasgados entre eles ao mesmo tempo que ambos revelam-se terríveis carrascos de mulheres, seja a mãe, a namorada ou a prostituta do bordel. Porém, pela moral vigente na hipócrita e demagoga sociedade, Cícero e Everardo preferem manterem-se ligados por laços das marcas de violência lato sensu [verbal, psicológica, visual e até mesmo física] que deixam por onde passam.Alguns estudiosos da mente humana afirmam que uma homossexualidade reprimida pode gerar relacionamentos doentios, porém sem nunca tocarem nem mesmo no assunto e muitas vezes o recriminarem quando não destilam a pura “homofobia”. A pressão social faz que assumam relacionamentos normais para encobrir no inconsciente seus verdadeiros desejos, e essa prática acaba muitas vezes por desembocar em tragédias que não se restringem aos dois envolvidos, como é retratado no filme. O lado claro do filme é Maninho, um homem que se divide entre os únicos subempregos oferecidos para viver mais próximo da dignidade e o talento para o Maracatu. Chega ao ponto de oferecer-se para, sozinho, cavar uma grande fossa atrás da casa de Auxiliadora só para vê-la. Fica exposto então a dualidade que a menina desperta entre o amor de Maninho e o ódio de Cícero, que apenas ao vê-la sendo exposta pelo avô – contra sua vontade -  a toma como um bibelô usado.

Os núcleos de Auxiliadora e de Cícero, assim como na vida real, não se encontram a não ser no momento crucial e violento do filme entre os dois personagens principais. Neste meio tempo, é explicito diversas atitudes reprováveis para qualquer ser humano que ainda possa ter um mínimo de noção daquilo que é bom, daquilo que evolui as sociedades para uma vivência mais harmoniosa possível. Vivemos numa realidade onde a paz é passageira, sempre quebrada por notícias de atitudes que ferem o simples e natural direito à vida, a liberdade do próprio corpo muitas vezes culminando com a morte.  As famílias amenizam ao máximo as transgressões crescentes dos descendentes ou descendentes até culminarem em tragédias que destroem, às vezes por completo, vidas de inocentes.

Que mais Assis despontem na cena nacional e menos diretores bunda-moles do tipo que só grava comédia global, assim nossas mazelas não serão esquecidas, jogadas para debaixo do tapete. Atitudes essas que podem até gerar risos e gargalhadas momentâneas, porém são impossíveis de construir uma sociedade próspera, harmônica entre si e igualitária. Baixio é uma amostra fiel da inconsequentemente sociedade que damos forma, capturando como pano de fundo para o desenrolar da história um típico lugarejo que reflete bem as discrepâncias sociais abordadas pelo roteiro corporificado lealmente pelo talentoso elenco. Baixio... pela sua qualidade técnica, de interpretação e profundidade social, já é um clássico do cinema nacional.

Walter A.
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