Série Especial: Filosofia - P.10

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- Santo Agostinho [Agostinho de Hipona] 354 a 430 a. C.

Desde a decadência da escola aristotélica com a incorporação do Estado Grego ao Império Romano, o que se viu [ou melhor, o que não se viu] na filosofia foi uma ascensão das teorias religiosas das mais diversas em detrimento do entendimento das coisas universais, das dúvidas que auxiliavam o homem a deixar cada vez mais o lado selvagem em segundo plano e enraizar o ser pensante adormecido em nós.  Com o início da queda do Império Romano, mais precisamente no ano 400 d. C.  e com a invasão dos visigodos no ano de 410 a. C. a única coisa que mantinha o mosaico que formava o Império Romano unido era a tão renegada religião cristã. E é justamente nesta época que a filosofia reaparece como sendo ciência de alto conceito perante os governantes, uma vez que tudo desde então era baseado na Religião, o Papado carecia de teorias para alicerçar sua Doutrina e perpertuar seu domínio no início da Alta idade Média, estendendo seus tentáculos a cada novo reinado europeu que surgia. Com vocês Santo Agostinho, o filósofo que municiou a igreja:

Agostinho nasceu na cidade de Tagaste, província de Souk Ahras, na época uma província romana no norte da África, na atual Argélia, filho de pai pagão, chamado Patrício e mãe católica, Mônica. Foi educado no norte da África e resistiu aos ensinamentos de sua mãe para se tornar cristão. Agostinho era de ascendência berbere. Com onze anos de idade, foi enviado para a escola em Madaura, uma pequena cidade da Numídia. Lá ele tornou-se familiarizado com a literatura latina, bem como práticas e crenças do paganismo. Em 369 e 370, ele permaneceu em casa. Durante esse período ele leu o diálogo Hortensius de Cícero (hoje perdido), que deixou uma impressão duradoura sobre ele e despertou-lhe o interesse pela filosofia e passou a ser um seguidor do maniqueísmo. Com dezessete anos, graças à generosidade de um concidadão, chamado Romaniano, o pai de Agostinho pode enviá-lo para Cartago para continuar sua educação na retórica. Vivendo como um pagão intelectual, ele tomou uma concubina; numa tenra idade, ele desenvolveu uma relação estável com uma jovem em Cartago, com a qual teve um filho, Adeodato. Durante os anos 373 e 374, Agostinho ensinou gramática em Tagaste. No ano seguinte, mudou-se para Cartago a fim de ocupar o cargo de professor da cadeira municipal de retórica, e permanecerá lá durante os próximos nove anos. Desiludido pelo comportamento indisciplinado dos alunos em Cartago, em 383, mudou-se para estabelecer uma escola em Roma, onde ele acreditava que os melhores e mais brilhantes retóricos ensinaram. No entanto, Agostinho ficou desapontado com as escolas romanas, que ele encontrou apática. Quando chegou o momento para os seus alunos para pagar os seus honorários eles simplesmente fugiram. Amigos maniqueístas apresentaram-lhe o prefeito da cidade de Roma, Symmachus, que tinha sido solicitado a fornecer um professor de retórica imperial para o tribunal provincial em Milão. Agostinho ganhou o emprego e ocupou o cargo no final de 384.

Enquanto ele estava em Milão, Agostinho mudou de vida. Ainda em Cartago, começou a abandonar o maniqueísmo, em parte devido a um decepcionante encontro com um chefe expoente da teologia maniqueísta, Fausto. Em Roma, ele relata ter completamente se afastado do maniqueísmo, e abraçou o movimento cético da Academia Neoplatónica. Sua mãe insistia para que ele se tornasse cristão e também seus próprios estudos sobre o neoplatonismo também foram levando-o neste sentido, e seu amigo Simplicianus instou-o dessa forma também. Mas foi a oratória do bispo de Milão, Ambrósio, que teve mais influência sobre a conversão de Agostinho. A mãe de Agostinho havia-o seguido para Milão e insistiu para que abandonasse a relação com a mulher com quem vivia ilegalmente e procurasse outra para casar, conforme as leis do mundo e a doutrina cristã. A amada foi mandada de volta para a África e Agostinho deveria esperar dois anos para contrair casamento legal; mas logo ligou-se a uma concubina. No verão de 386, após ter lido um relato da vida de António do Deserto, de Atanásio de Alexandria, que muito inspirou-lhe, Agostinho sofreu uma profunda crise pessoal. Decidiu se converter ao cristianismo católico, abandonar a sua carreira na retórica, encerrar sua posição no ensino em Milão, desistir de qualquer ideia de casamento, e dedicar-se inteiramente a servir a Deus e às práticas do sacerdócio. A chave para esta transformação foi à voz de uma criança invisível, que ouviu enquanto estava em seu jardim em Milão, que cantava repetidamente, "Tolle, lege"; "tolle, lege" ("toma e lê"; "toma e ler"). Ele tomou o texto da epístola de Paulo aos romanos, e abriu ao acaso em 13:13-14, onde lê-se: "Não caminheis em glutonerias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites". Ele narra em detalhes sua jornada espiritual em sua famosa Confissões (Confessions), que se tornou um clássico tanto da teologia cristã quanto da literatura mundial. Ambrósio batizou Agostinho, juntamente com seu filho, Adeodato, na vigília da Páscoa, em 387, em Milão, e logo depois, em 388 ele retornou à África. Em seu caminho de volta à África sua mãe morreu, e logo após também seu filho, deixando-o sozinho, sem família.

Após o regresso ao Norte da África, vendeu seu patrimônio e deu o dinheiro aos pobres. A única coisa com que ele ficou foi a casa da família, que se converteu em uma fundação monástica para si e um grupo de amigos. Em 391, ele foi ordenado sacerdote em Hipona (atual Annaba, na Argélia). Em 396, foi eleito bispo coadjutor de Hipona (auxiliar, com o direito de sucessão depois da morte do bispo corrente) e pouco depois bispo principal. Ele permaneceu nessa posição em Hipona até sua morte em 430. Ele deixou o seu mosteiro, mas continuou a levar uma vida monástica na residência episcopal. Ele deixou uma regra (latim, regulamentos) para seu mosteiro que o levou ser designado o "santo padroeiro do clero regular", isto é, sacerdotes que vivem por uma regra monástica. Sua vida foi registrada pela primeira vez por seu amigo São Possídio, bispo de Calama, no seu Sancti Augustini vita. Descreveu-o como homem de poderoso intelecto e um enérgico orador, que em muitas oportunidades defendeu a fé católica contra todos seus inimigos. Possídio também descreveu traços pessoais de Agostinho com detalhe, desenhando um retrato de um homem que comia com parcimónia, trabalhou incansavelmente, desprezando fofocas, rejeitando as tentações da carne, e que exerceu a prudência na gestão financeira conforme sua posição e autoridade de bispo. Sua vida não é tranquila: missa diária, prega até duas vezes ao dia, dá catequese, administra bens temporais, resolve questões de justiça (cerca, muro, dívidas, brigas de família…), atende aos pobres e órfãos, etc. Pouco antes da morte de Agostinho, a África romana foi invadida pelos vândalos, uma tribo guerreira que estava aderindo ao arianismo. Pouco depois de Hipona ser cercada pelos bárbaros Agostinho adoeceu; Possídio relata que ele gastou seus últimos dias em oração e penitência, pedindo para que os salmos penitenciais de Davi fossem pendurados em sua parede para que ele pudesse ler. Pouco tempo após sua morte, os vândalos levantaram o cerco de Hipona, mas não muito tempo depois eles voltaram e queimaram a cidade. Eles destruíram tudo, mas a catedral de Agostinho e a biblioteca ficaram inalteradas.
Agostinho foi canonizado por reconhecimento popular e reconhecido como um Doutor da Igreja. Na Igreja Católica, o seu dia é 28 de agosto, o dia no qual ele supostamente morreu. Ele é considerado o santo padroeiro dos cervejeiros, impressores, teólogos e de um grande número de cidades e dioceses. Para os protestantes ou evangélicos, Agostinho é referencial na história eclesiástica, pois foi um valoroso líder da Igreja primitiva e deixou suas marcas como verdadeiro discípulo de Cristo.
   
Pensamento

O problema do mal:
Em seu livro Sobre o livre arbítrio (em latim: De libero arbitrio) Agostinho responde de ao problema filosofico do mal de forma filosófica, demonstrando também filosoficamente que Deus não é o criador do mal. Pois, para ele, tornava-se inconcebível o fato de que um ser benevolente, pudesse ter criado o mal. A concepção que Agostinho tem do mal, tem como base teoria platônica e a desenvolve. Assim o mal não é um ser, mas sim a ausência de um outro ser, o bem. O mal é aquilo que "sobraria" quando não existe mais a presença do bem. Deus seria a completa personificação deste bem, portanto o mal não seria oriundo da criação divina, mas seu antagonista por excelência, na condição de fruto do seu afastamento. No diálogo com seu amigo Evódio, Agostinho explica-lhe que a origem do mal está no livre-arbítrio concedido por Deus. Deus em sua perfeição, quis criar um ser que pudesse ser autônomo e assim escolher o bem de forma voluntária, um ser conciente. O homem, então, é o único ser que possuiria as faculdades da vontade, da liberdade e do conhecimento. Por esta forma ele é capaz de entender os sentidos existentes em si mesmo e na natureza. Ele é um ser capacitado a escolher entre algo bom (proveniente de Deus em uma criação perfeita) e algo mau (a prevalência da vontades humanas inperfeitas e que afetam negativamente a criação da perfeição idealizada por Deus). Entretanto, por ter em si mesmo a carga do pecado original de Adão e Eva, estaria constantemente tendenciado a escolher praticar uma ação que satisfizesse suas paixões (a ausência de Deus em sua vida). Deus, portanto, não é o autor do mal, mas é autor do livre-arbítrio, que concede aos homens a liberdade de exercer o mal, ou melhor, de não praticar o bem. Esse argumento também implica que o ser humano tem direito de escolha sobre sua propria vida, não é apenas um ser programado. E se, segundo Agostinho, o bem é apreciada por Deus e a prática perfeita, todas as ações por ele inspiradas se tornam virtuosas e louvaveis. Sendo que em um universo de seres não conciêntes e que não portem livre arbitreo, as praticas do bem e do mal seriam programadas e não poderiam ser classificadas como boas ou ruins.

 Tempo e Criação:
No Livro XI das Confissões (em latim: Confessiones) Agostinho põe-se a cargo de versar acerca da criação do mundo por meio do Verbo, que podemos entender como "palavra criadora". Com efeito, o filósofo compreende que o mundo só poderia ter duas origens 1) do nada (em latim: ex-nihilo) e 2) a partir de parte da sua substância. No entanto, a última suposição é falsa pois teria de se admitir um Deus imutável, algo não condizente com o pensamento do Doutor Africano. A fim de responder a asserção: “Do que faria Deus antes de criar o mundo?” o filósofo tece sua crítica aos maniqueus e expõe seu pensamento a respeito do tempo e da criação. A evidente resposta de Agostinho à tal pergunta é a de que Deus não estaria a fazer nada, pois não havia tempo antes deste ter sido criado por Deus, ficando expresso que o tempo nada mais é do que uma criatura assim como o mundo e todas as coisas. Para o pensador, o tempo e o universo foram criado em conjuto, e Deus estaria fora deste contexto pois ele é eterno e a eternidade não entra no tempo. Para o filósofo medieval, o tempo não tem existência per se e só pode ser apreendido por nossa alma por meio de uma atividade chamada de "distensão da alma" (em latim: distentio animi). A distensão da alma, grosso modo, nada mais é do que a compreensão dos três tempos; pretérito, presente e futuro na alma, de modo que seja possível lembrar do passado, viver o presente e prever o futuro. Agostinho afirma que a alma é quem pode medir o tempo e essa "medição" atesta a existência do tempo apenas em caráter psicológico.

Na história do pensamento ocidental, sendo muito influenciado pelo platonismo e neoplatonismo, particularmente por Plotino, Agostinho foi importante para o "baptismo" do pensamento grego e a sua entrada na tradição cristã e, posteriormente, na tradição intelectual europeia. Também importantes foram os seus adiantados e influentes escritos sobre a vontade humana, um tópico central na ética, que se tornaram um foco para filósofos posteriores, como Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, mas ainda encontrando eco na obra de Albert Camus e Hannah Arendt (ambos os filósofos escreveram teses sobre Agostinho). É largamente devido à influência de Agostinho que o cristianismo ocidental concorda com a doutrina do pecado original. Os teólogos católicos geralmente concordam com a crença de Agostinho de que Deus existe fora do tempo e no "presente eterno"; o tempo só existe dentro do universo criado. O pensamento de Agostinho foi também basilar na orientação da visão do homem medieval sobre a relação entre a fé cristã e o estudo da natureza. Ele reconhecia a importância do conhecimento, mas entendia que a fé em Cristo vinha restaurar a condição decaída da razão humana, sendo portanto mais importante. Agostinho afirmava que a interpretação da Bíblia deveria ser feita de acordo com os conhecimentos disponíveis, em cada época, sobre o mundo natural. Escritos como sua interpretação do livro bíblico do Gênesis, como o que chamaríamos hoje de um "texto alegórico", iriam influenciar fortemente a Igreja medieval, que teria uma visão mais interpretativa e menos literal dos textos sagrados. Tomás de Aquino tomou muito de Agostinho para criar sua própria síntese do pensamento filosófico grego e do cristão. Dois teólogos posteriores que admitiram influência especial de Agostinho foram João Calvino e Cornelius Otto Jansenius.


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